25.5.07

Parte I


Olhei para o espelho para ver o que estava projectado. Era eu, mais uma vez, a eu de sempre mas com uma consciência diferente.
Enquanto a banheira se transformava em oceano, observei atentamente o meu corpo. Os contornos barrocos, o perfil grego e tudo aquilo que até então não quis ver.

O que eu realmente gostava era não ocupar tanto espaço. Cabiamos melhor se não ocupássemos tanto espaço. Quando tento sair do lugar no autocarro, tenho de fazer aquele jogo de cintura e aplicar os meus conhecimentos de bodybalance. E quando as coisas não correm bem e eu caio em cima daquele homem de bigode à man, que não tirou os olhos de mim durante toda a viagem... lá fico eu toda vermelha, ruborizada até às orelhas, de sovaco transpirado (nnhac!!!) e a penso por um segundo se não me terei esquecido da protecção "Doveniana". Maldigo a vida, a falta de civismo, a inexistência de ergonomia na concepção dos autocarros que, afinal, foram concebidos para países com seres de dimensões corporais diferentes...

Se eu fosse bidimensional, como as minhas fotografias, era muito mais fácil. Passava entre as gotas de chuva, por debaixo da porta, enrolava-me, como um cobertor, em volta do meu amor e cabia dentro da malas dos meus amigos que partem e deixam saudades.

Ali estou eu, no espelho da casa de banho, que já se assemelha a Londres. Só ocupo aquele m2, mais para mais do que para menos.

Então, de tesoura em punho, inicío o recorte de mim mesma. Resultado: toda eu sou contornos barrocos. Reduzi-me ao movimento ondulante das curvas corporais, mas com muito mais dentro de mim.

Tal como uma esponja, tudo que por mim passava era absorvido por esta nova dimensão própria. As três miaus, o oceano na banheira, o Tiago, o frigorífico, a minha cama, o filme que estava a dar. Debaixo do braço do do meu amor, lá circulei pela casa, até que nos aventurarmos a ir para a rua. Tudo dentro de mim. O carro vermelho que se destacava entre todos os outros, os outros, a D. Alzira costureira, a minha rua - e é uma grande rua - os miúdos do colégio, o autocarro que eu nunca apanhava, desta vez ficou encurralado dentro de mim. Toda eu cor-de-laranja!

A Celma achou que não estava com boa cara, que eu não estava com boa cara. A Celma estava em mim, a Celma não estava com boa cara. E o meu amor ? O meu amor não estava feliz. Os contornos barrocos estavam a incomodar debaixo do braço. Voltamos para casa.

Não posso ser bidimensional e contornos, não sou só contornos. Não me movo sozinha nesta bidimensionalidade. Tanta agitação dentro de mim, e no entanto estou dependente do braço do meu amor.
Já não sou só duas dimensões, voltei a ser três.
Estou cá fora, fora do espelho.


Confrontar-me com a minha imagem num espelho era o simples ritual matinal, em que consciêncializava a minha existência como matéria. Claro que todos os espelhos, vidros e reflectores da minha existência material povoam as ruas, os lugares que percorro diáriamente. Eu estou lá como estou senpre cá, deste lado onde tudo que se passa é sentido. O outro lado do espelho é-me desconhecido, revela aquilo que não vemos por isso ficamos na “ignorância” do lado de cá.
O meu corpo como algo identificativo da minha existência singular, tem sem dúvida particularidades que até então me eram, não desconhecidas, mas sim quase indiferentes. Uma confrontação necessária com o mesmo fez com que tomasse consciência de todos os traços, de todas as marcas do tempo e da herança genética.
“...we are what is seen.”-
D.H. Lawrence – e afinal o que é visto? Vemos aquilo que queremos e muitas vezes de maneira a que haja uma identificação. O recorte da minha silhueta em espelho, o único traço físido identificativo. A procura do eu através dos outros, a imagem reflectida é a imagem que os outros procuram na minha imagem.


by grrrgirl

3 comments:

Anonymous said...

mas que introspecção tão sincera...linda.....belo exercicio
liha com um grande beijo pa minha amiga curvilinea barroquiana..

Anonymous said...

Fabuloso!
Não sabia que a magia do teu "ver" tinha continuidade na magia do teu "escrever"!
Parabéns!
Beijos

Anonymous said...

Estou muito muito contente com o que li minha menina.